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A mostrar mensagens de fevereiro, 2018

Raro é o sonho... Aqui

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Solto da guita que o manteve preso, por instantes, à minha mão, o pião rodopia, finalmente, sobre o chão de terra que a insistência dos passos dos Homens roubou ao jardim. A vida goza sempre de uma dupla face, e a monotonia que persiste na rotina da gente é capaz de inventar terreiros para podermos brincar. Ali mesmo ao lado, num canteiro desenhado pelo buxo, e aparentemente indiferentes ao pião, as rosas vermelhas discutem com as amarelas, atiçando-se mutuamente os espinhos; divagando sobre a magna importância do sangue ou do sol, que lhes dão cor, não se entendendo sobre qual tem o estatuto de mais nobre e imperial. Um pássaro que as sobrevoa baixinho sorri chilreando, enquanto uma borboleta de asas de papel se afasta lentamente para o retiro dos malmequeres, cansada de tamanha e fútil discussão. Eu baixo-me, apanho o pião que devolvo à guita e ao bolso, deitando-me de seguida no tufo de relva que me parece mais confortável, como quem encara o céu de frente e olhos nos

O meu sono...

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A minha história, trago-a presa à pele na memória dos amores, trago-a no rosto e no penteado, onde as algas e as rosas se prenderam, emergindo comigo na ressaca dos instantes em que fui até ao mais profundo de mim mesmo. O meu sono, sempre que ocorre, é apenas aparência sobre o desassossego de agarrar e dar cor aos sonhos, porque os meus olhos fechados à claridade, não repousam, mas olham fixamente a inquietação que mora dentro do meu peito, tentando tomar-lhe a força e a vontade. O mundo move-se por via da alma da gente que se inquieta, tal qual a música mais inspirada nasce da morte do silêncio às mãos do ruído moldado pelo desassossego do artista. O certo e o errado respondem apenas à consciência, indiferentes às regras fúteis da moral vazia “eructada” por terceiros. Em tempo de Quaresma apela-se à esmola, e sobressaem tantos que se enrolaram nas riquezas do universo, mas se esqueceram de juntar os mais elementares pedaços de si. Transaciona-se o bem parecer sobre os véus o

Os malmequeres e o mar

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Talvez não exista nada mais intensamente nosso, e tão Lusitano, quanto o assumido namoro dos malmequeres com as ondas do mar. Portugal, na definição que lhe advém da alma, é o imenso denominador comum entre o campo e o oceano; duzentos quilómetros de intersecção entre um e outro, onde, contrariando o poeta, nem o mar e nem a terra acabam ou começam: vivem ambos, intensa e eternamente. No alto de uma colina escutando o vento, eu vejo os malmequeres que reluzem imitando o sol, enquanto as ondas se espreguiçam languidamente em espuma, num cortejar constante. E o vento, que escuta de um e de outro, o desejo, traz-me versos que eu guardo nesse bloco imenso e transparente que é o pensamento. O desejo que nasce da alma e abraça o corpo, não poderá nunca ser pecado. Pecado, sim, é o juízo humano de distanciar a alma do corpo, separando irremediavelmente aquilo que Deus uniu. Como as flores tão despudoradamente nascidas dos resquícios do fogo, os versos enaltecem a morte de tod

Um chá na lua

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Algures pelos finais dos anos setenta e princípios dos oitenta do século passado, a taberna do primo "Ai - ai" (sim, fixem mais uma alcunha das muitas que há em Vila Viçosa), local onde a minha avó Natividade ia tratar da matança do porco, preparando-me uns chouriços mínimos para eu brincar; mudou de estatuto, de nome e de dono. Fecharam-lhe a porta, colocando a dita à mercê de uma campainha, e a "Colmeia" passou a ser o primeiro "pub" da minha terra, com a Rua das Vaqueiras a ganhar ares de Rua da Atalaia e Bairro Alto, as coordenadas do saudoso "Frágil". Como os bares são como as pessoas, sendo ambos vítimas do velho hábito de preencher aquilo que não se conhece com tudo o que há de mais escabroso, e às vezes, nos antípodas do que é efetivamente a verdade, existiam localmente as versões mais apocalípticas sobre, afinal, quase nada mais do que apenas uma bola de espelhos numa sala na penumbra. Como é que o comum dos mortais poderia entend