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A mostrar mensagens de setembro, 2017

As praias

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Despojei o corpo, do medo e dos arquétipos, entornando depois sobre um instante qualquer, a areia toda das praias onde brinquei descalço, e que transportei, alegre, com a crucial ajuda dos bolsos das calças. Sobre essa ampulheta informal que carrega todas as eras da minha história, há um velho búzio que tomou o canto das ondas e o guardou com religiosa fidelidade, e há árvores entretidas a desenharem sombras que perfumam a matiz alourada das dunas. Desse instante em que me sentei no chão cruzando as pernas e descruzando a liberdade, afastei os contentores e a lama, varri o pó, o eco das promoções e das promessas de produtos, serviços e candidatos, sacudi as ervas já mortas, e agitei o ar impregnado de monóxido de carbono, fazendo nascer a praia que sonhei; muito a tempo de sair a navegar. Hoje, e sempre, eu sou este encontro de cor indefinida, mas muito minha; eu sou a história entrelaçada nos sonhos todos que guardei e trouxe do mar, repousando e tomando fôlego da brisa fre

Outono

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O Outono tem olhos doces e alaranjados, da cor da marmelada em taças de porcelana que as mães esconderam debaixo de um recorte de papel vegetal, e puseram à janela para que secasse ao sol. O Outono abraça-nos com uma brisa fresca, envolvendo-nos na lembrança de todas as idades. Veste-nos camisolas, casacos e sobretudos de bolsos fartos onde escondemos a mão, recordando-nos que onde agora cabe a carteira ou o telemóvel, antes vivia a bolsa dos berlindes ou o pião. O Outono chama-nos para casa, senta-nos em frente a livros que cheiram a novos, e a alvos cadernos que de tão aprumados, facilmente nos arrancam o compromisso de novas histórias escritas com uma excelente caligrafia. Sim, um caderno em branco é como o nascer do dia. A construção da cabana de canas e pedra que projetámos para uma das encostas do castelo ficará agora suspensa, e talvez nos deparemos com os seus destroços, daqui a uns meses, quando andarmos em busca de musgo para o presépio. O Outono toma o canto

JFK

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O tempo livre não é muito, mas o metro, aqui mesmo à porta do Centro de Congressos, consegue levar-me de forma célere até ao cemitério de Arlington. Passo o pórtico da segurança, recolho um mapa, sigo as setas... e os sapatos de sola resvalam no piso polido por onde caminho na companhia dos esquilos, procurando a sombra dos enormes carvalhos. O calor e o tom cinza do céu parecem confirmar a trovoada que a meteorologia já ousara anunciar. Viro à direita, depois à esquerda, subo uns degraus, e chego finalmente ao túmulo do Presidente Kennedy, cruzando-me com um grupo de turistas que já regressava. Agora, somos cinco pessoas, o silêncio e uma chama. Do silêncio dos grandes Homens observa-se melhor a repugnante pequenez dos outros, e à luz da chama que persiste na memória sobre as balas de uma tarde de Novembro de 63, em Dallas, conseguimos ver-nos a viver uma imensa, e triste, sexta-feira treze. Talvez já não tarde a madrugada de um sábado que desminta este tempo e o devolva

“I have a dream”

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O tempo não apaga o eco das palavras incandescentes, fogueiras acendidas pelo ímpeto de liberdade, que persistem, aqui, entre os ramos dos carvalhos e as farripas de sol, que os beijam em êxtase ao fim da tarde. O sangue, rubro, desenha papoilas que nos afloram ao olhar, candeias em verso, velas que nos limpam os soluços da viagem e nos impedem de naufragar. Os meninos, que vieram de perto ou de mais longe, e que trajam vestes coloridas sobre os seus corações sem cor, fizeram uma roda gigante onde as mãos e as vozes rimam com o futuro, e com o poema desenhado para uma eterna canção de amor. Há beijos sentados nos bancos de madeira, detalhes de amores sem género, credo, rótulo, dinheiro ou distância, beijos sem aditivos ou corantes, e que a alma desenhou à sua maneira, como se mais nada tivesse importância. O homem que salta à corda e a mulher que assobia, passeando-se de mãos nos bolsos por entre a gente, decalcam gestos sobre a verdade que trazem ao peito, esmagando pela

Calípolis

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Somos alegres, otimistas, e temos, em geral, muita graça. Mesmo que se nos atrase o amanhecer, e não possamos ver o sol, fazemos renascer o sorriso com um chocolate quente na barraca do brinhol . E a graça? Se não a virmos a passear por aí, sabemos que estará, por certo, na Fonte da Praça. Temos a alma gigante que é raiz de uma fé inspiradora. Por exemplo, jamais assumimos morrer, vamos sempre passar a eternidade, e descansar, para detrás de Nossa Senhora. Somos uma terra curiosa com os detalhes doces do sul, e outros que são únicos e interessantes. Temos as alcunhas, que por aqui são anexins, e temos a dolência Alentejana presa na voz, mas também temos três aldeias que vão dar ao Rossio, e uma ilha onde se pode chegar andando, bastando cruzar a Porta dos Nós. Sabemos onde é o paraíso. Quem desce dos Capuchos em direção ao Galandim , vira depois do convento, à esquerda, seguindo sempre pela cerca do Jardim. Se procurarem a Rua das Escadinhas, a da Freira, a do Poço, a Cor

Setembro despenteia o tempo…

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Setembro despenteia o tempo e as árvores, arrastando e prendendo folhas rubras e amarelas na franja de todos os minutos. Para além disso, Setembro, calça-nos e fecha-nos os pés em sapatos, com os atacadores a prenderem as memórias das tardes passadas no campo ou na imensidão da areia que se enfeita com a espuma do mar. Dirá quem acordar agora de um sono profundo, que Setembro semeia sombras, projetando os troncos vazios sobre as fachadas das casas; como se o sol morresse definitivamente debaixo das folhas cansadas ou dentro da pele engraxada das botas que Setembro calçou... Os troncos apenas repousam, saboreando o gosto da sua história, e tomando fôlego para destemidas primaveras. Os troncos são como braços esperando os beijos de outros desejados braços que vivem no condomínio do peito de quem amamos. Entretido com o aroma doce de marmelos maduros, com a uva que tomou do céu, o sol, e os ouriços que soltarão as castanhas como quem nos beija o paladar, Setembro é esta casa