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A mostrar mensagens de outubro, 2012

Boa noite e um olhar

A noite caíra há muito sobre a imponência granítica da cidade, e na tarde e noite do Porto, nem apenas por um segundo a chuva dera uma trégua, privando-se de soar intensa nas cascatas promovidas pelos mais altos beirais. Não se sente frio, mas persiste o desconforto da água… Paro o carro algures no acanhado espaço do subsolo inventado por um somítico arquitecto e preparo-me para à superfície, iniciar o slalom entre gotas da chuva, nos cem metros que distam entre o parque e o meu hotel, ganhando essa dose de coragem protegido por uma tímida arcada de pedra. Apercebo-me que não estou só naquele espaço diminuto em que apenas os ladrilhos mais chegados à parede, estão a salvo da incessante persistência da chuva. Ao fundo à direita, há uma mala de viagem da Samsonite e ao lado umas sapatilhas brancas de uma marca que não distingo. Próximo, sentado numa esteira de praia daquelas que as revistas do Jet Set nos oferecem em tempo de verão, está um homem que aparenta ter quarenta a

Tarde de Outono

Não fora conhecer de cor todos os contornos da vista da minha janela preferida aqui de casa, e diria que lá ao longe, a curva da Mata dos Medos e da Caparica, que me revela todos os dias o esplendor do Cabo Espichel, jamais existira. Não há Tejo ou Atlântico no meu horizonte, só o nevoeiro, que há séculos sabemos jamais nos trará de volta “Dons Sebastiões”, mas que nos oferece esta estranha sensação de “paraíso” no outro lado do mundo, da Nicole Kidman como Grace no fantástico “Os Outros”, de Alejandro Amenábar. Faço um café. Mas de saco, que os dias assim pedem mais do que um sorvo potente de uma Bica ou Cimbalino, pedem uma caneca cheia para prolongar ao limite o conforto do aroma e do sabor. Passo pela televisão e não consigo que um canal sequer me prenda a atenção, de entre as dezenas disponibilizadas pela minha box Zon, Desligo assumindo sem pudores que há definitivamente uma linha que me separa dos gostos televisivos da maioria dos meus compatriotas numa tarde de doming

Pães de Deus

Lisboa revela-se esplendorosa na manhã de Outono, descortinando-se pela imensidão da luz, à medida que avanço por entre as folhagens ocres, castanhas e vermelhas de Monsanto. Encontro a Patrícia triste mas carregada de fé, e na capela onde repousa a sua avó, sentamo-nos a falar das memórias que perpetuarão viva esta senhora que eu nunca conheci pessoalmente, mas apenas e só pela demonstração dos afectos que a sua neta, com quem tenho o grato prazer de privar diariamente, infinitamente lhe dedicava. E de cuidados de mãe, de carinhos, de fofos Pães de Deus na merenda para a escola, de rosas brancas e declarações de amor, se foi fazendo a nossa conversa. Uns instantes mais tarde, estando com um colega na área que é uma espécie de corredor de acesso às capelas, somos interpelados pelo sacerdote que vem para oficiar o funeral. Cumprimenta-nos e surpreende-se quando o trato por Senhor Padre, tendo então de lhe explicar que uma cruz na lapela e um saco de papel com uma alva e uma es

Tuga®

Estão ao meu lado a almoçar metades de Pizza enfeitadas de saladas de alface, verdes descarregares de consciência da dieta que os seus volumes exigem, mas que a sua gula e ansiedade de todo impedem de acontecer. São quatro e falam com um sotaque situado algures entre o da D. Dolores Aveiro e do Joe Berardo. Cometo o pecado da indiscrição, escuto-as e não haja dúvidas, transpiram “portugalidade” por todos os poros. Porque há marcas que estão mais coladas a nós do que o Pastel de Nata… O Português nunca está bem, está sempre menos mal. E vai indo. Quando afirma “eu não sou de dizer mal de alguém”, preparem-se os interlocutores, porque de seguida haverá pelo menos três horas garantidas da mais pura fofoca e maledicência. Não escapará ninguém e isto é não gostando de dizer mal… Raramente assumimos o apetite e o prazer de comer, travestindo de sacrifício, o gozo que temos em estar sentados à mesa durante horas, degustando todos os pratos entre o pão com manteiga e a inevitável b

O menino de Sacavém

O dia amanheceu solarengo na costa do Barlavento junto a Porches, e apenas o Caldeirão, passara já o meio-dia, me começa a revelar as nuvens, primeiro dispersas e depois aglutinadas num tom cinza escuro, que da Ponte Vasco da Gama me fazem ver a face oriental de Lisboa sob uma chuva intensa. Há gente e mais gente, em todos os recantos do aeroporto. Para lá da nossa língua pátria, facilmente se escuta Inglês, Alemão, Castelhano... A zona das partidas é uma Babel que se escoa ao ritmo de chamadas para embarque. Já no avião, espreito pela janela oval que jamais algum Americano por mais poderoso que seja, poderá mandar abrir, e desperta-me a atenção, no contexto cinza deste dia de chuva, o vermelho da camisola de um menino, acompanhado por um adulto, que junto a um portão de rede algures no extremo do aeroporto junto a Figo Maduro, movimenta a mão direita em jeito de adeus. Ainda no outro dia à mesa do almoço e na grata companhia das minhas colegas, recordávamos o tempo em que me

Ana e Ricardo

As pedras do caminho alcatifam-se pela força e pela gana que fazem galgar todas as muralhas e abrir de par em par os guarda-ventos das barrocas talhas, para na festa da gente airosa e perfumada, famílias e amigos vestidos de sorrisos, chegar ao cume, ao pico onde há séculos os ritos celebram a fé, e onde basta um despojado Sim para dizer Amor. Alvas e rubras são as flores que a cor e perfume nos apontam o caminho. Alvas e rubras, Paz e sangue de Vida, indissociáveis ou pleonasmos reforços do real e intenso Amor. E o físico repicar dos sinos, que prolonga e amplia o Sim, faz eco planície fora, desta indescritível química do riso profundo de almas em festa. Olho para o lado, e vejo a Luísa a chorar. Recordo-me das noites longas da nossa amizade e da festa de partilhar a fé quando jurávamos a certeza de um futuro de dias diferentes e bons. A vida, hoje, fez-nos compadres. Cúmplices, nas mãos cheias de pétalas e arroz, estamos mais do que nunca, nesta solarenga tarde de Out

Tias nas nuvens

No voo de Barcelona para Lisboa, o avião da Portugália vem cheio que nem um ovo, não sendo necessário ir muito para lá do inicio do embarque dos passageiros, para que se instale a maior confusão. Gente, malas e sacos de plástico, competem ferozmente por um espaço que em turística é realmente muito exíguo. Numa fila com 3 lugares, instalo-me na coxia, sempre naquela expectativa de ver quem me iria companhia. Foi necessário esperar quase pelo fim do embarque para que aparecessem duas senhoras louras e atacadas de madeixas, magras e com um tom de pele que quase me convenço que estiveram o verão à beira mar e sempre a dispensar protector, e como ele lhe faria bem para protegerem as cicatrizes das operações que fizeram às respectivas bocas. As plásticas cheiram-se a léguas porque semelhantes bocas não fazem parte do catálogo das ditas disponibilizado por Deus por nascimento. Falam alto, barafustam com a hospedeira e cedo me apercebo que não podendo sinalizar a sua superioridade com

Viva a República!

A bem da produtividade e como parte do nosso processo contínuo de “gerrmanização”, celebramos hoje pela última vez a implantação da República como feriado nacional. Para o ano, para além da República a 5 de Outubro, deixamos também de celebrar com feriado a festa móvel do Corpo de Deus, Todos os Santos, a 1 de Novembro, e ainda a Restauração da Independência a 1 de Dezembro. Permanecerão feriados, a Fraternidade Universal a 1 de Janeiro, a Sexta-feira Santa da Paixão de Cristo, a Liberdade no 25 de Abril, o Dia do Trabalhador a 1 de Maio, Nossa Senhora da Assunção a 15 de Agosto e Nossa Senhora da Conceição a 8 de Dezembro, para além do Natal a 25 de Dezembro. Não sei se esta selecção foi estratégica ou um acaso, mas que o resultado está carregado de lógica e se adequa à nossa real situação de país de cabeça para baixo, lá isso está. Vejamos: - Da Fraternidade Universal que recebemos dessa coisa chamada Troika, se fez o caminho para o nosso calvário, numa permanente Sexta-f

Secar as vacas

Presumo que sem pagarem direitos de autor a La Fontaine, andam os nossos políticos muito treinados no uso de fábulas, o que não é de estranhar pois pelo percurso académico expresso nos seus curricula, o ponto mais avançado a que chegaram no estudo da literatura só poderá mesmo ter sido “A cigarra e a formiga” ou quiçá, “Os cinco na Ilha do Tesouro”. E já que de animais falamos, eu aproveito o mote e sempre vos digo que nesta história não me sinto nem cigarra nem formiga, eu sinto-me e sou, uma verdadeira vaca. Isso mesmo, uma vaca leiteira, com restrições assinaláveis no acesso a pastagens mas a quem é exigido uma cada vez maior produção de leite. As minhas tetas servem para dar alimento a meio Portugal, porque o outro meio, está comigo no redil em delírio de produção. Do meu leite se alimentam assim instituições, organizações e seres, todos essenciais ao meu país. Como é importante alimentar a Fundação do Carnaval de Ovar, a Fundação Porto Gaia que fornece gratuitamente um C

Casinhas de papel

Na casa da Tia Maria e do Tio João, à Rua de Santa Luzia, existia um pequeno quintal onde estava implantado um canteiro, que para além de hortelã, salsa e coentros, era o habitat de um imperial limoeiro que durante todo o ano nos oferecia uns enormes e sumarentos frutos de cor amarela, para além de uma fantástica sombra a todo o espaço rectangular cujo piso era composto por umas enormes lajes, onde eu me entretinha a brincar. Numa sala de porta sempre aberta para o quintal, havia um pássaro amarelo, o Sarico, que dizia olá e imitava os sons do martelo do Tio João enquanto ele se dedicava ao seu ofício de sapateiro. No piso de cima existia um enorme quarto rasgado por uma janela, que por ser alta, e pelo facto da casa estar num dos pontos mais altos da Vila, permitia ver toda a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no Castelo. Era neste quarto, com um tecto inclinado mas muito alto, que eu dormia numa das três enormes camas que ele comportava, todas alinhadas ao melho

Música

Dos lados do mar, por onde se vislumbra o Bugio, penteia o Tejo, o vento, que beija a Ponte e o Cristo-Rei, trazendo com ele, a sopros, o ritmado bater das ondas, e esse indício de gaivotas no seu doce voar de liberdade. De nascente, do sul e do norte, das lezírias, da planície e das serranias, assobia o ar, falando de mil águas, de arrozais, trigo, esteva, urzes e giestas. E o homem, apregoa jornais e diz-se vender a sorte. É a grande, aquela que por estes dias nascerá no andar da roda. Da roda da fortuna. Passa então ligeiro, o vinte e oito, e ouve-se o ranger da já gasta e amarela madeira, hoje arrendada às marcas. Escuta-se o tilintar de um sino que o denuncia ao passar, e que, oportuno, dá sinal de paragem, algures nesse eléctrico movimento que um metálico som reproduz no ar, na deslizante entrega aos carris, que há muito rasgaram paralelos e a cor de prata, as calçadas negras do centro das ruas da cidade. E surge a mulher que bamboleia a anca e que grita lindo, fresco,